domingo, 13 de junho de 2010

Os Anos ’80, os Anos ’90, os Anos ’00, o ano de 2099 A.D., Peter David e eu

Eu nunca fui uma pessoa consumista. Nem um pouco. Minha mãe costuma insistir e me oferecer dinheiro para que eu vá comprar roupas novas, pois as minhas estão em constante estado de decomposição. Não tenho nem telefone celular, nunca tive. Já tentaram me presentear com alguns, mas eu os coloquei em algum lugar e nunca usei. Entretanto eu tenho um pequeno ponto fraco: literatura.
Definitivamente tento evitar o máximo possível entrar em sebos, ou literalmente gasto todo o dinheiro que carrego na carteira, TODO mesmo. Se, por algum acaso não encontrar algum livro que me interesse — o que seria bem incomum — por um preço que eu posa pagar — o que não é tão incomum assim —, sempre têm as HQs.
Ao lado do prédio do Instituto de Artes da UFRGS existe um sebo, a que eu bravamente resisti por vários meses, adotando técnicas como andar sempre pelo outro lado da rua, ou olhar para o longe ou para o alto ao passar em frente à sua porta. Mas é complicado resistir a uma tentação constante, e sucumbi ao seu chamado. Entre outras coisas, o que eu encontrei lá foram várias edições de Homem-Aranha 2099 e X-Men 2099 por preços de R$ 1,00 e R$ 0,75 cada. E, havia algum tempo, tentara eu completar minha coleção dessas revistas — que eu cheguei a comprar alguns números esporádicos quando foram publicadas na década de ’90 — mas quase desistira de tal objetivo, até esse dia. Claro que gastei todo meu dinheiro e adquiri todos os exemplares que encontrei na prateleira que eu não tinha, e agora minha coleção quase está completa.
Sobre a série 2099 da Marvel, talvez alguns não a conheçam. Essa história começou em 1992 com uma aventura escrita por Stan Lee e desenhada por Paul Ryan chamada Ravage 2099. Nela era contada a história de Paul Philip Ravage, um agente da polícia ambiental em um EUA no ano de 2099. Ravage tem tanta fé no trabalho que realiza e nos seus chefes da corporação Alchemax que não acredita quando ouve uma denúncia feita por um menino de que seu pai fora assassinado por descobrir que a maior rede de corrupção relacionada à poluição ambiental ficava dentro da própria Alchemax, e sua equipe de patrulha ambienta não passava de fachada. Ao questionar seus líderes, Ravage é vítima de uma tentativa de assassinato, bem como de uma armação que lhe dava diante do público o crédito por todos os esquemas de corrupção dentro da companhia. Após escapar do atentado, Ravage se arma em um ferro-velho construindo uma armadura bem duvidosa com lixo metálico e usando um velho caminhão de lixo como base de operações (!).
Certo, essa foi uma história bem mediana. Stan Lee, bem, ele é Stan Lee. Devemos respeitar o homem por ter criado o Universo Marvel e mudado os rumos das HQs, mas isto foi lá nos anos ’60. Para a época em que foi escrita, essa deveria ser uma única história e só. Bem, seria se não tivesse dado idéias para outros roteiristas e editores dentro da Marvel. Como seria o Universo Marvel em 2099? Logo, Ravage 2099 se tornou uma revista de publicação regular, sendo que posteriormente o personagem título é contaminado por radiação na ilha Hellrock e ganha a habilidade de se transforma em uma versão mais “feroz” de si. Além desse precursor vieram mais três títulos:
Punisher 2099 (1993) contava as histórias de Jake Gallows, um agente de polícia especialista em armas do Olho Público que teve toda sua família assassinada. Algumas edições depois, que eram escritas por Pat Mills e Tony Skinner, Jake encontra um grande amor, e que também é convenientemente — para os roteiristas e leitores, certamente não para os personagens — assassinada. Jake para de ter fé na polícia como única forma de trazer justiça às ruas e, após encontrar os lendários Diários de Guerra de Frank Castle, resolve adotar seus métodos e se torna uma nova versão do Justiceiro. Esta era uma séria bem mediana, ou até menos do que isso, que seguia à risca a linguagem das HQs da geração de ’90: personagens sem profundidade, roteiros extremamente simples e muitas cenas de ação e confronto em que Gallows abusava e exibia seu imenso arsenal de armas futuristas para espancar e executar os criminosos.
Doom 2099 (1993) era escrita por John Francis Moore, com desenhos de Pat Broderick, e tinha uma idéia muito interessante. No ano de 2099, Victor von Doom, nosso bom e velho Doutor Destino, surge através de um deslocamento temporal e cai em Latvéria — sua pequena nação européia — em ruínas e corrompida que atende a interesses de corporações, maltrata a população cigana e é comandada pelo braço de ferro do ciborgue Tiger Wilde. Destino, sem lembrar exatamente como chegou àquela época, confronta Tiger Wilde e é derrotada diante do grande limbo que separa sua armadura da tecnologia vigente em 2099. Após se aliar a um grupo de ciganos rebeldes e construir uma nova armadura de adamantium lanxita, Doom derrota Wilde e reassume sua pátria. Daí parte em guerra contra as corporações gananciosas que ameaçam seu país e duas figuras misteriosas que tentam manipular sua vida. Bem, a idéia de John F. Moore era interessante, mas não foi muito bem executada. A trama não instigava o leitor a querer logo saber o que viria na próxima história, os personagens, além exceto pelo próprio Destino, não eram nada carismáticos. Doom 2099 só começou a realmente cativar nas últimas edições idealizadas por Moore em que ele conta com a ajuda de um escritor novato que posteriormente assume o título. Mas calma, no devido momento eu tratarei dele.
Spider-Man 2099 (1992) era, sem comparação, o melhor dos quatro títulos e carro-chefe da linha. Escrito pelo sempre genial Peter David e com desenhos de Rick Leonardi, contava as histórias do geneticista empregado da Alchemax Miguel O’Hara, que para se libertar de uma droga ao qual seu patrão o viciara para que continuasse trabalhando em um projeto moralmente questionável, tentou reconstruir seu próprio DNA. Entretanto um colega competidor de O’Hara sabota o equipamento e, durante o procedimento, substitui o DNA de Miguel na memória do programa pelo DNA de uma aranha. O’Hara se torna uma fusão entre um homem e uma aranha, e ganha força, agilidade e visão ampliadas, garras retráteis nas extremidades de cada dedo, glândulas lançadoras de teias nas costas das mãos e — meu preferido — presas retráteis injetoras de peçonha. Após ser perseguido pela Alchemax, Miguel O’Hara, usando um disfarce feito com o lendário tecido de moléculas instáveis desenvolvido por Reed Richards, passa a combater os interesses da Alchemax e das demais corporações como uma nova versão do Homem-Aranha. Como eu disse, era o melhor dos quatro títulos. Miguel O’Hara não era apenas uma versão diferente de Peter Parker, e sim um personagem novo, acompanhado de vários outros personagens carismáticos, e infestado com as ironias de Peter David. Bom, Peter David é Peter David, e, de certa forma, ele mudou minha vida.

Nota 1 — Se você não conhece HQs e acabou no meio deste texto acidentalmente, saiba quem é Peter David e o que ele fez por mim:
Peter David, durante o final da década de ’80 e início da ’90, foi o roteirista responsável por Hulk. Ele não foi apenas um escritor de Hulk, e sim O escritor de Hulk. Peter David fez pelo Hulk o que Frank Miller fez por Demolidor e Chris Claremont, pelos X-Men. Stan Lee foi o criador desses personagens, mas foram estes homens que os desenvolveram, criaram suas mitologias e os moldaram no que são hoje. David criou um conceito interessante com Hulk: Bruce Banner, após uma vida contida de emoções reprimidas e tendo assassinado seu próprio pai violento em legítima defesa, sempre possuiu problemas psíquicos que resultaram em personalidades múltiplas. O que o acidente com a bomba gama fez foi dar ao corpo de Banner a capacidade de mudar de forma cada vez que uma de suas outras personalidades assumia o controle. E Peter David soube como trabalhar esse conceito, seja com Doc Samson — o psiquiatra de Banner —, Sr. Tira-Teima — a terceira personalidade sacana de Banner/Hulk — ou a fusão de todas as múltiplas personalidades resultando no temporário “Novo Incrível Hulk”. Além de Hulk, Peter David também foi o responsável por reformular X-Factor a partir da edição Nº 71, após a equipe original se reintegrar aos X-Men em 1991. Após seu toque, a equipe foi reformulada como um time especial de agentes governamentais formado por mutantes para ajudar nas relações interespecíficas Homo sapiens e Homo superiors. Sim, esse era um título que eu só posso definir como genial. Apesar da época — a fatídica Idade das Trevas da década de ’90 — em nada se comparava com a linguagem de seu tempo. Na verdade, ficava bem claro ser uma tentativa da Marvel de se aproximar do estilo de Keith Giffen e J. M. DeMatteis em Justice League International da DC, mas nem por isso deixava de ser um dos melhores, talvez o melhor, título periódico da Marvel na época. A equipe era como uma grande família: pessoas bem diferentes, mal-humoradas e forçadas a conviver sob o mesmo teto, e as cenas de ironia, as piadas de Jaime Madrox (Homem-Múltiplo), os exageros de Guido “Fortão” Corossella, a falta de paciência de Mercúrio, os Professores Chalker e seus “acidentes de laboratório”, declarações como as em que os mutantes afirmam preferir serem chamados de “Geneticamente Complexos, ou ‘gecê’ para encurtar”, e o cartão postal que Mercúrio recebe do Senhor Sinistro são impagáveis. Bem, foi exatamente essa época de X-Factor que me fez querer ser um escritor, eu tive vontade de poder criar histórias fantásticas, mas tão divertidas quanto estas. Logo, Peter David foi minha principal inspiração e influência, então se vocês leitores quiserem culpar alguém por isso, culpem-no.

Ainda em 1993, John Francis Moore foi responsável por mais um título da linha 2099, onde todos os defeitos presentes em Doom 2099, como a falta de personagens carismáticos e de uma trama envolvente foram corrigidos, e muito bem. Estou falando de X-Men 2099 (1993): Xian Chi Xan, um violento mutante vietnamita conhecido como Fantasma do Deserto integrante de uma antiga quadrilha criminosa tem uma visão e resolve mudar sua vida. Xian passa a pregar a paz e a harmonia entre todas as formas de vida, e, sob influência dos ensinamentos dos líderes mutantes do passado, como Xavier, Magneto e Zhao, organiza reuniões em um complexo em ruínas no deserto de Las Vegas onde qualquer um pode comparecer e se integrar à comunidade. Após Xian ser vítima de uma tentativa de assassinato sob ordens do líder de um dos grandes cassinos de Vegas, um grupo de mutantes se organiza para salvar Xian, e formam uma nova geração de X-Men.
Temos ainda em Unlimited 2099 Nº 1 (1993) John Eisenhart, um produtor dos estúdios cinematográficos da Ilha de Hollywood que trai uma seita que prega ideais relacionados a Bruce Banner e causa a morte de todos os integrantes, além de ser vítima de um canhão de radiação gama. Eisenhart arrependido, após adquirir a capacidade de se transformar em um imenso e poderoso monstro verde, ajuda quem aparece em seu caminho tentando compensar seus erros e se torna um novo Hulk em uma nova época. E Ghost Rider 2099 (1994), Kenshiro “Zero” Cochrane é um pirata de dados na Cidade Transversal, e com sua gangue, após roubar dados da poderosa corporação D/Monix, é assassinado. Entretanto Zero estava com a mente ligada ao cyberspaço no momento da morte, e suas memórias e identidade foram salvas pelos moradores da Oficina Fantasma, um grupo de consciências artificiais que vive na rede de computadores. Os moradores da Oficina Fantasma não estavam nada contentes com os rumos que a sociedade humana estava tomando, podendo atém mesmo ameaçar as suas existências, então fazem uma proposta a Cochrane: devolveriam-no ao mundo dos vivos em um poderoso corpo robótico de aço-carbono — dotado de um eficiente armamento tecnológico, indutores holográficos e um veículo flutuante avançado — como seu agente no mundo físico, seu Motoqueiro Fantasma. Escrito por Len Kaminski e com desenhos primeiro de Chris Bachalo e depois de Kyle Hotz, as histórias de Zero eram iguais, mais diferentes de tudo. Os desenhos eram sempre sobre fundo negro, muito escuros e com muita poluição visual, típicos dos anos ’90. Os roteiros estavam impregnados de violência, correrias, cenas de ação, Zero contando vantagem e se exibindo sobre os adversários e sedento por vingança, também típico da década de ’90. Mas havia algo diferente aí nesse meio, uma crítica social ao poder dos mega-conglomerados empresarias, um clima absolutamente cyberpunk, os ideais anarquistas expostos. Era como se os anos ’90 tivessem algo a dizer, uma causa pela qual lutar. Apesar de minha antipatia pela escola dos anos ’90, confesso que eu muito me diverti com essa série, muito mesmo.
Bem, sobre o mundo em 2099… Os EUA eram (ou “serão”, eu nunca sei como conjugar verbos quando deslocamento temporal está envolvido) um país fragmentado, quase um feudalismo empresarial. O presidente era uma figura fraca e submissa ao Congresso. Por sua vez, o requisito para ser um congressistas era ser presidente de uma das mega-corporações como a Alchemax, D/Monix e Stark-Fujukawa. Cada grande cidade era comandada por uma dessas companhias, que servia os habitantes com todos os serviços públicos, aqueles que poderiam bancá-los, claro. Las Vegas, por exemplo, era administrada pelo Sindicato dos Cassinos, e seu sistema jurídico baseava-se em uma grande roleta que decidiria se o acusado era culpado ou inocente e qual seria sua pena. O serviço policial era prestado por grupos como a Bons Sonhos e o Olho Público, polícias privadas que protegiam seus assinantes que estavam com suas mensalidades em dia. Quem não pudesse bancar uma assinatura de serviço policial estava à própria sorte. A elite vivia nos altos arranha-céus, e a população pobre habitava o submundo, as ruínas do que foram as nossas cidades atuais escuras, sendo o sol totalmente bloqueado pelos grandes prédios, e na ausência de qualquer lei ou autoridade formal. Os mutantes foram quase completamente exterminados durante um evento obscuro no início do século XXI chamado de O Grande Expurgo. Os ricos bancavam tratamentos genéticos para impedir o nascimento de filhos mutantes. Logo, os mutantes eram uma minoria pobre e marginalizada que, junto com os degens — cobaias de experimentos de laboratório mal sucedidos — e mutróides — habitantes deformados da Ilha Hellrock, que era local de depósito de lixo radioativo e tóxico — tiveram seus direitos civis revogados.
Havia uma nítida imagem em todos os títulos da linha 2099 a mostrar um mundo, e principalmente uns EUA, corrompido pela ganância das grandes empresas, pela ausência do Estado, pelo uso indiscriminado dos recursos ambientais e pelo capitalismo levado ao seu extremo. A tecnologia cegara o homem do que é ser humano, um mundo artificial e frio, um feudalismo tecnocrata decadente que necessita desesperadamente de heróis. Eu vejo aí o germe do que seria a nova geração de roteiristas de HQs e que definiria a escola de ’00.

Nota 2 — Se você realmente não conhece HQs, acabou no meio deste texto por acidente e mesmo assim ainda não desistiu de lê-lo e fica se perguntando do que diabo eu estou falando ao me referir às décadas e as relacionando às Histórias em Quadrinhos:
Nos anos ’80 surgiu uma geração de roteiristas (Alan Moore, Frank Miller, Neil Gaiman, Grant Morrison, J. M. DeMatteis) que tinha uma proposta em oposição à linguagem vigente. A Era de Prata, que teve início em 1958 com o surgimento de Barry Allen, o segundo Flash, e que vigorou principalmente durante década de ’60, lidava com conceitos como heróis idealizados, tanto física quanto moralmente, mas quase sem personalidades, cuja única função era salvar quem precisasse ser salvo e sumir para esconder sua identidade secreta. Havia uma forte preocupação com a moralidade, os heróis sempre davam bons exemplos, e uma forte linha tracejada no chão em amarelo limão radioativo separava o que era certo do errado e o que era bom do que era mau. Todos aqueles que cometiam ações imorais eram punidos no final, e os morais, recompensados. Uma época de uniformes coloridos e signos bem explícitos.
Bem, foi contra isso que os oitentistas se voltaram. Eles passaram a combater tais ideais valendo-se da amoralidade. A partir deles, o mundo não era simples, e alguém havia lavado a faixa traçada no chão deixando difícil de identificar suas fronteiras. O mundo era um lugar sombrio e pessimista, os heróis se abrigavam sobre trajes não tão gloriosos e inspiradores e nem tão coloridos. Às vezes, os heróis não eram tão heróicos, e os vilões possuíam algum objetivo nobre por trás de suas ações. A narração passou a ser em primeira pessoa pelo ponto de vista de um dos personagens, assim nós nunca sabíamos o que realmente aconteceu como relatava o antigo narrador onisciente da Era de Prata, e sim o que o personagem interpretou dos fatos, distorcidos por suas crenças e convicções. Não existia mais verdade a ser dita, e apenas o que o personagem em questão acreditou ou quis acreditar que era a verdade. Bill Sienkiewicz, em Elektra Assassin, chegou a fazer ilustrações subjetivas, em que não se via o que de fato acontecia com os personagens, e sim aquilo que os personagens enxergavam com seus olhos, o que incluía distorções e alucinações geradas por substâncias alucinógenas e perturbações mentais. Tudo foi tomado pelo subjetivismo, como nas narrativas e fábulas japonesas, não existiam mais confrontos entre heróis e vilões, apenas entre dois homens com objetivos antagônicos. Diante de tais confrontos, que agora eram mais combates de personalidade do que combates físicos, os personagens perderam sua superficialidade e ganharam mentes complexas, confusas e assustadoramente interessantes fazendo da psicologia um dos temas das HQs.
Então veio a geração de ’90, um movimento que foi iniciado por Todd McFarlane, Jim Lee e outros no início dos anos ’90. Eles vieram com objetivos de combate aos ’80 e restauração dos ideais da Era de Prata. Acreditavam que o heroísmo das HQs havia se perdido em um mundo de sombras e ambigüidade, que a aventura fora esquecida entre longas e enfadonhas cenas de diálogos. Para alcançar o fim a que se propuseram, trataram de inserir alguns novos conceitos — ou retomar velhos — como a volta das cores e da idealização. Agora os heróis voltaram a ter seus corpos idealizados, com uma meticulosa musculatura bem desenhada sob roupas colantes que as evidenciavam. Colantes em cores berrantes, diga-se de passagem, que voltavam a trazer as cores e a luz aos personagens. Os diálogos e confrontos intelectuais foram deixados de lado, e as cenas de ação voltaram a ser importantes. Os confrontos agora seriam resolvidos de maneira heróica e aventureira (combates físicos), e ficaria claro quem era o herói e quem era o vilão. Esta separação estava presente até mesmo com a nova conceituação do “anti-herói”, que agora não era mais um personagem ambíguo a se opor ao personagem principal, e sim um “herói” noventista que se valia de mais violência do que a necessária para derrotar os vilões. Querendo liberdade sob suas criações — e toda a grana que isto envolvia — a geração de ’90 se organizou para formar a Image Comics, e por quase toda a década foi a cultura dominante. Mas tudo isso saiu do controle com os discípulos e seguidores de McFarlane e Lee. Influenciados pela MTV e criando uma linguagem que seria posteriormente adotada no cinema, eles tentaram repetir tal conceito, mas foram mal sucedidos ao compreendê-lo e interpretá-lo. Confundiram “retomada da ação heróica” com “violência exagerada” e “poluição visual”. Confundiram “idealização da imagem heróica” com “supervalorização da imagem” e misturaram “oposição ao conflito psicológico” com “forma sobre o conteúdo”. Assim surgiram aberrações — Rob Liefeld — que acreditavam que o trabalho gráfico e a forma visual eram o mais importante, e que os roteiros agora eram obsoletos e desnecessários.
Coube à geração de ’00 nos resgatar das profundezas deste mar gelado e negro e fazer a respiração boca-a-boca de que precisávamos para voltar a respirar. Warren Ellis, Mark Millar, Brian K. Vaughan e Garth Ennis — apesar deste último ser um tanto quanto “estranho” ao outros — ficaram estupefatos diante da década morta dos quadrinhos. Uma década inteira em que as HQs não disseram nada, não protestaram, não lutaram, não criticaram a sociedade. Eles precisavam fazer alguma coisa, e fizeram. Passaram a negar os anos ’90, negar a idealização, negar a forma acima do conteúdo, negar a violência desnecessária — só quando desnecessária, quando funcional e conveniente ele continuaria a ser empregada, mas sempre com um motivo. Da década de ’80 eles resgataram o clima pessimista, a idéia de que tudo ao nosso redor parece levar a um mundo ruim, que nossos heróis muitas vezes são um bando de sacanas, e que esse conceito de herói inclui nossos líderes políticos e astros da música. O que acrescentaram de novo foi a constante crítica política. Na década de ’80 ela aparecia ocasionalmente nos discursos anarquistas, nas discussões sempre presentes envolvendo a Guerra Fria — lembrem-se que a geração de ’80 foi moldada em um ambiente de tensão nuclear EUA-URSS —, mas essa crítica política estava direcionada mais ao lado humano, a como a humanidade se conduzia à autodestruição. Aqui em ’00 a política era discutida em suas especificidades, aos limites das interferências externas, ao abuso militar norte-americano, ao consumismo exagerado.

Voltando a 2099, mais precisamente ao jovem escritor vindo de histórias medianas de Excalibur que assumiu Doom 2099 a partir da edição Nº 26 em 1995. Ele era Warren Ellis e conduziu Victor von Doom a um novo rumo. Destino prepara e executa um golpe onde toma o controle dos EUA e se proclama seu novo presidente. Suas primeiras medidas são acabar com os privilégios corporativos, estatizar os serviços de polícia para todos os cidadãos, conceder cidadania a mutantes, degens e demais formas de vida não convencionalmente consideradas humanas, iniciar programas de manutenção ambiental, e reconstruir e fortalecer o Estado na forma de uma “democracia autocrática”. Começa aí a saga 2099 A.D. (After Doom ou Após Destino em português), em que a ditadura bem intencionada de Destino tenta recuperar o país destruído. Considero aqui o marco zero da geração de ’00 e laboratório para Ellis realizar o que fez ao assumir Stormwatch e transformá-lo em The Authority e tudo o que veio após em decorrência.
Claro que as corporações se opõem a Destino e usam um símbolo heróico do passado para recuperar o controle fazendo com que a população os apóie acreditando estar restabelecendo a democracia. O símbolo: Capitão América. Depois de quatro anos, em 1996 as épicas aventuras do ano de 2099 se encerram com o ataque atlante que derrete as calotas polares e eleva o nível do mar inundando o mundo. Um típico final de desastre ambiental provocado pela ganância e violência humana, bem de acordo com a proposta da linha. Posteriormente, em 2099: Manifest Destiny (1998), Len Kaminski, diferente do anarquismo e do cyberpunk de seus roteiros para Ghost Rider 2099, relata a saga final dos sobreviventes das inundações vivendo na Terra Selvagem e de como eles, aprendendo com os erros que a humanidade cometera até então, recriam a sociedade e fazem da espécie humana algo melhor com um final otimista e redentor. Posteriormente o Universo 2099 foi retomado em outras histórias da Marvel, como divertido o arco Turnê Mundial de Exiles em 2006 e nos especiais Timestorm 2009/2099 em que Brian Reed envolve o Homem-Aranha do presente e Wolverine na tentativa de uma reinvenção do Universo 2099.
Bom, o que eu acredito e quis expor aqui é que 2099 marcou a retomada da crítica e consciência social nos quadrinhos norte-americanos e foi o berço do da geração de ’00, e que junto com Peter David foi o que me motivou a querer escrever, contar histórias e, talvez, dizer algo que faça com que aqueles que leiam pensem sobre os rumos da nossa sociedade.