domingo, 11 de julho de 2010

Pacientes de Brinquedo



No mês passado, junho de 2010, precisei fazer uns exames médicos, então fui eu em uma sexta-feira pela manhã à Santa Casa de Porto Alegre. Saí um tanto depois do horário em que deveria ter saído de casa, e a única informação precisa que tinha sobre o local onde eu deveria comparecer para fazer tais exames era que eles seriam realizados no “bloco A”, além, é claro, do fato de ser na Santa Casa, o que reduzia a busca a apenas uma gigantesca quadra repleta de uma série de prédios hospitalares.
Quando cheguei ao prédio em que suspeitei que deveria estar já há algum tempo se tivesse respeitado o horário estipulado pelo meu despertador ao invés de rolar mais um pouco pela cama, entrei pela porta que estava mais próxima e tratei de procurar pelo “bloco A”. Uma missão que aparentemente não me causou muitos problemas, pois logo na entrada havia algumas placas indicando os blocos A, B e C. Chegando ao bloco A, parei logo atrás de uma mulher que, segurando a documentação referente à sua consulta ou exame, esperava diante de um guichê para ser atendida. Os guichês, pelo menos os lugares ocupados por quem estivesse a recepcionar quem ali chegasse, estavam vazios. Uma das funcionárias do hospital estava na sala logo ao lado esclarecendo alguma duvida de uma das muitas pessoas que ocupavam todos os bancos disponíveis e ainda sobrava quem estivesse escorado pelas paredes ou mesmo em pé esperando uma vaga para se escorara em uma parede. Atrás do balcão havia ainda três pessoas, duas vestidas como a funcionária que conversava com um dos pacientes, e um terceiro indivíduo, que, pelo jaleco branco e estetoscópio, deveria ser um médico ou aprendiz de médico. Pois bem, esse trio estava a conversar, possivelmente debatiam sobre algum tema bem interessante — como o último episódio de Lost, qual seria o resultado de uma luta entre Batman e Wolverine ou ainda o porquê desse revival dos anos ’80 — pois sequer perceberam nós dois a esperarmos para sermos atendidos.
Quando a outra funcionária, a que estava conversando com um dos pacientes a esperar, terminou o que fazia e percebeu a pequena fila diante do balcão, correu para o interior do guichê para saber o que a mulher à minha frente na fila precisava. Essa mulher explicou que, devido a algum incidente, perdeu a consulta que tinha marcado, e desejava saber se podia ser atendida em outro horário. A funcionária do hospital tentou ser o mais delicada possível ao explicar que, devido à grande procura por consultas, o próximo horário disponível seria daqui a seis meses, mas que ficaria feliz em remarcar para o mês de dezembro. A mulher diante de mim tentou argumentar, mas a funcionária lhe disse que não poderia fazer nada, pois todos os horários até o início de dezembro já estavam reservados.
Enquanto a mulher deixava o hospital decepcionada, eu ficava receoso, afinal, estava atrasado. Entretanto, a funcionária, antes mesmo que eu me aproximasse do guichê, identificou o requerimento de exame na minha mão e me explicou que, por eu possuir convênio médico, para ser atendido deveria me dirigir a outra ala do hospital: seguir reto pelo corredor, dobrar à esquerda e ir até o final. Eu segui as instruções que me foram dadas, passei pelos blocos B e C, depois me deparei com o bloco D e, ao virar o corredor, percebi diante de blocos correspondentes a todas as letras do alfabeto. E em todos eles havia uma enorme aglomeração de pessoas. Todos os bancos lotados, pessoas em pé no meio dos corredores querendo ser atendidas, pessoas reclamando de dores, crianças chorando no colo de mães que não sabiam como consolá-las, pais furiosos com a demora na prestação de ajuda aos seus filhos, idosos sentados estáticos olhando para o vazio como se já tivessem perdido qualquer esperança de serem atendidos e agora aguardavam simplesmente porque não sabiam mas o que fazer ou aonde ir. Um alfabeto inteiro de pessoas empilhadas esperando por ajuda médica. Não pude deixar de lembrar a sensação que tinha ao abrir a velha caixa de tênis onde guardava os bonecos com que brincava nos anos ’80 e ’90: Hal Jordan, Barry Allen, G. I. JOE’s e Thundercats caídos sem expectativa ou vida própria apenas esperando que eu os dissesse como agir, o que fazer e pelo que lutar. Só que essas pessoas não eram plástico colorido com a coluna vertebral confeccionada com um atilho, eram pessoas com vida “fora da caixa de tênis”. E dessa vez eu não podia resolver seus problemas ou guardá-las de volta ao roupeiro caso eu não gostasse de como se desenrolasse a história.
Quando cheguei ao final do corredor, sentia um vazio desconfortável, frio e escuro. Então percebi que havia chegado a uma parte fria e escura do prédio, e silenciosa. Continuei caminhando e, de repente, ao fazer uma curva brusca, estava em um salão bem decorado. Em um dos meus lados havia um portão pomposo que dava para a rua, o portão por onde eu “deveria” ter entrado. Do outro lado havia uma recepcionista ansiosa para me atender. Rapidamente me indicou outro bloco A. Nessa nova ala o alfabeto se repetia, mas em uma grafia bem diferente. Cada um dos blocos era separado dos demais e do corredor por paredes de vidro. Do lado de dentro, havia cadeiras confortáveis — sendo que nem um quinto delas estava ocupado — ar-condicionado, revistas e jornais dos mais variados à disposição, água ou café, e uma televisão ligada exibindo um jogo da Copa do Mundo de futebol. Também estava lá uma mesa bem organizada com mais atendentes simpáticas dispostas a resolverem meus problemas. Ao perceber que eu estava atrasado — uma hora atrasado —, a funcionária mencionou o fato com desdém. Não um desdém esnobe, mas como se não fosse nada, apenas um detalhe irrelevante e numa entonação tão suave que não havia como interpretar aquilo como uma repreensão.
Esperei alguns minutos, e logo o médico me chamou. Realizei os exames e, na saída, a funcionária cordialmente se despediu de mim como se fôssemos velhos amigos. O que me restou foi me despedir da funcionária no salão principal e deixar o prédio pelo imponente portão decorado com relevos escultóricos. Ao pisar do lado de fora o primeiro sentimento que me veio foi de vergonha e de nojo de mim próprio. Eu entrei, resolvi meu problema e saí satisfeito, enquanto todas aquelas pessoas que preenchiam o “alfabeto” e que chegaram muito antes de mim, que provavelmente marcaram suas consultas e exames seis meses antes, ficaram lá com seus problemas. Foi como se pelo simples fato de poder pagar um droga de mensalidade eu merecesse ser tratado diferente de todas que ficaram lá. A diferença não foi só na velocidade do serviço, foi no tratamento que recebi, nas instalações em que fui atendido, na porcaria do portão do século XIX pelo qual aquelas pessoas não podem passar. E, se não tivesse entrado pela porta “errada”, provavelmente eu não saberia disso ou não sentiria isso. Por mais que se veja nos jornais ou se ouça as histórias, tais coisas são só histórias, sofrimentos de algum personagem pelo qual nós sentimos uma compaixão distante, mas não nos reconhecemos ou nos vemos no lugar. Alguns são atendidos imediatamente após uma hora de atraso, outros esperam seis meses, e o que diferencia isso são a cor e o logotipo do requerimento que se tem em mãos.