Na terça-feira da semana passada, dia 4 de dezembro, eu fazia
uma das minhas caminhadas rotineiras do Shopping Praia de Belas até o Instituto
de Artes da UFRGS. Estava eu pensando em coisas que não deveria pensar, mas que
minha mente tendenciosa à circularidade e autodestruição não me permite
evitar, quando contemplei algo inesperado em meu caminho. Estava quase na
esquina entre as ruas Praia de Belas e Borges, naquela praça em frente ao
Colégio Pão dos Pobres.
No instante em que o vi, percebi que ele havia me percebido e
olhava de volta com a mesma curiosidade com que eu o examinava. Era um lindo
corcel branco, selado e preparado para entrar em ação. Não, não para ser
cavalgado, pois obviamente era um coração selvagem daqueles que não podem ser
domados, apenas conquistados pelo tempo em que merecê-lo. Era mais como se
fosse um adereço púrpura o que estava sobre seu lombo, a mesma cor do penacho
que ostentava sobre a fronte. Parecia estar pronto para um grande espetáculo,
talvez ter a honra de encontrá-lo em meu caminho tenha sido este espetáculo,
talvez minha cara pasma tenha sido um espetáculo para ele, mas isso eu apenas
posso conjecturar.
O fato de ele estar vagando sozinho por paragens como aquela
prova o quão indomável era sua essência. Certo que eu também vagava solitário e
a esmo, mas a principal diferença, creio eu, eram nas naturezas de nossos
seres. Não que isso faça de mim algo superior, talvez até mesmo o contrário,
mas ouso agora afirmar que este cavalheiro sem cavaleiro era feito de mais refinada
matéria plástica. Sim, e tinha apenas uns quinze centímetros de altura, mas não
foi isso que o impediu de sair sozinho às ruas. Estava posicionado sobre uma
daquelas grandes tampas de concreto que cobrem os dutos de escoamento de água
das ruas, cercado por terra nua, daquelas frustradas por desejarem ser local de
brotação da vida verde, mas impedidas pelas pisadas de transeuntes insensíveis
às suas angústias. Ele olhava o movimento de veículos na rua, enquanto eu o
observava e imaginava se estava a esperar alguém. Então me lembrei de um fato
ocorrido comigo há muitos anos.
No final da década de 1980, certa vez eu andava pelas ruas do
Centro de Porto Alegre na companhia de meus pais e, talvez, mais alguém. Não
tenho certeza dos lugares por qual passamos, parece que minha memória só
guardou o cenário mais imediatamente próximo de mim: apenas um lado da rua, um
prédio cercado em construção ou reforma, uma calçada que tivera parte das
pedras do calçamento removidas para a obra. Em determinado momento da jornada,
percebi que o tesouro que sempre mantinha em minhas mãos — neste caso, na minha
mão livre, pois a outra era usada por minha mãe para me conduzir — não estava
mais lá. Eu entrei em desespero, por certo. Como poderia continuar deixando-o
para trás? E se ele precisasse de mim? E se eu precisasse dele? Éramos uma
equipe, ele era importante. Os meus acompanhantes cogitaram continuar, mas
acabaram cedendo aos meus protestos. Então refizemos o caminho no sentido
inverso observando-o atentamente em cada detalhe, mirando entre os pés dos
demais transeuntes, mas constantemente eles me alertavam das altas
probabilidades de insucesso de nossa demanda. Lembro de sentir uma dor, o medo
de ter de, em um momento muito próximo, confrontar a triste verdade, a perda.
Talvez tenha sido a minha primeira e uma das mais rápidas experiências diante
dos Estágios Kübler-Ross. Mas finalmente eu o vi. Estava lá me esperando.
Valente, certo de que eu voltaria para resgatá-lo. O que me envergonhou,
porque, por um momento, eu considerei desistir. Mas o encontrei, o meu boneco
do Lion-O do desenho Thundercats. Meu
pai o guardou em seu bolso para nos garantirmos de que outro incidente como
este não ocorreria em nossa jornada, e nunca mais o deixei para trás outra vez.
Então voltamos para o corcel e eu. Eu relembrei desse dia ao
vê-lo, graças a ele. E eu soube que havia me dado o que Roland Barthes chamou de punctum, e por isso eu o agradeci. Pensei em juntá-lo e levá-lo
comigo, mas então percebi que ele não era meu. Já havia me presenteado, e seria
injusto se eu o aprisionasse, se eu impedisse o próximo viajante de aprender
algo com ele. Pensei ainda na criança que naquele momento protestava e
convencia os pais a voltar pelo caminho na esperança de resgatá-lo. Então me
despedi, e o deixei lá me esforçando ao máximo para não olhar para trás.
No dia seguinte, passei pelo local de ônibus, e ele não
estava mais lá. Então me lembrei do romance Roveradom
que J. R. R. Tolkien escreveu para o seu
filho Michael quando ele perdeu seu cachorrinho de brinquedo, em que narrava
todas as aventuras tidas pelo cãozinho até ser novamente encontrado. Lembrei de
Roveradom — um rover random — e
preferi acreditar que o corcel branco havia voltado para casa.
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