Miguel RIO BRANCO
Dog Man – Man Dog, 1979
(detalhe)
Dog Man – Man Dog, 1979
(detalhe)
fotografia
Ao adentrar no Santander Cultural para ver
a exposição Ponto Cego de fotografias
e outros trabalhos de Miguel Rio Branco — realizada
em Porto Alegre de 5 de setembro a 11 de novembro de 2012 —, eu me deparei um espaço negro. Em meio
à escuridão que o lugar se tornou, as obras expostas pareciam gritar em uma
explosão de cores, me chamavam de longe. Eu até tentava desviar o olhar, mas
invariavelmente acabava diante de outra distante tentação cromática, de outra
sereia cantando para me atrair.
Então, ao desistir de minha resistência,
tomei coragem para me aproximar e confrontá-las. Entretanto, ao me aproximar,
era como se o encanto se fosse, como se a canção ecoando ao longe fosse muito
mais poderosa do que ela vinda direto de sua fonte. Só havia um murmúrio.
Os trabalhos pareciam me falar sobre cor e
textura — principalmente textura —, sobre capturar formas, sobre a captura de
elementos — objetos — em um espaço capturado, sobre acumulação de diferenças,
sobre contraste, mas tudo isso era só formal. Certo, havia algumas questões
sociais em alguns lugares, mas me pareciam tão longe, escondidas por tantos
níveis de massas, granulações e relevos. Pareciam ser apenas uma desculpa para
tratar das formas.
Caminhando pelo espaço, eu via imagens
ásperas, que eu acreditava que deveriam me ferir, mas só esfolavam minha pele,
não me machucavam por dentro. Houve um instante que o que mais me incomodava na
exposição era minha indiferença a ela, a preocupação de ter me tornado
insensível querendo que aquelas paredes desabassem e me esmagassem na esperança
de que assim as obras me fizessem sentir algo. Então eu continuei caminhando
naquele lugar que eu achava que deveria me passar alguma sensação mais
elaborada e intensa, mas que neste dia só me explicava relações frias que
poderiam ser convertidas em fórmulas ou tabelas.
Então eu vi lá na frente, brilhando entre
o espaço negro, e corri em sua direção. Ao chegar, não, antes disso eu
desacelerei e, diferente dos outros casos, não me veio a indiferença. Eu quis
recuar e ir para longe, mas não fui. A obra era Dog Man – Man Dog, de 1979, e tratava-se de duas fotos, mas foi uma
delas, e posicionada acima, que me atraiu e repeliu simultaneamente. Era a
fotografia de um cão deitado em uma calçada, encolhido, totalmente contaminado
com alguma forma de doença de pele. E os detalhes de texturas de Rio Branco só
faziam sua moléstia parecer mais grave, e, ao mesmo tempo, faziam-na parecer
uma extensão da sujeira no chão em que estava, nas feridas provocadas nas
pedras do calçamento.
O cenário era tão frio, o concreto e as
pedras como um deserto que combate o que é vivo, e o cão lá fraco e parecendo
agonizante. Tão fraco que parecia não ter mais forças para agonizar. E tudo o
que eu pensava era em como aquela imagem me enfraquecia.
Fez-me recordar um acontecido há cinco
anos. Eu voltava para casa mais cedo do que deveria. Por algum motivo, desisti
de assistir uma aula e fui embora. Quando caminhava para casa, vi lá na frente
na rua um homem despejando o conteúdo de um carrinho de mão em um barranco.
Terminado seu afazer, o homem veio em minha direção empurrando o carrinho e
passou por mim indo à direção oposta. Quando passei pelo local onde o homem
descarregara, tive a impressão de ouvir um barulho, mas depois de confrontar o
silêncio, segui adiante. Então novamente ouvi o som que não entendia. Voltei,
me aproximei da proteção na lateral da rua e olhei barranco abaixo. Lá no
fundo, encima de uma pilha de lixo, estava em um grande saco um cachorro
enfiado pela metade, com as pernas e cauda para fora, e um pequeno filhote que
me chamava. Então pulei a cerca e desci ao outro nível. Lá embaixo eu percebi
que o cachorro mais velho dentro do saco estava morto, e o filhote
completamente coberto por uma doença de pele que o fazia mais parecer uma
tartaruga do que um cão. Então o coloquei em cima do paredão que levava ao
nível de aonde eu viera e torci para que não corresse para a rua enquanto eu
escalava de volta. Lá em cima, eu não sabia o que fazer com o filhote, e ele
passou a me seguir. Então andei devagar para que pudesse me acompanhar até em
casa.
Então, com toda a atração e repulsa, com o
conflito entre ir embora ou permanecer ali observando mais um pouco, eu percebi
que esta foto conseguiu me ferir, me machucar por dentro, e não só esfolar a
pele. Talvez ela tenha me servido como um punctum
dentro da exposição. Não um ponto em uma foto, mas uma foto entre fotos, que
acaba sendo de alguma maneira um ponto entre pontos, mas em uma escala
diferente. Algo que eu possa definir, tocar, limitar e que, por alguns
instantes me arrancou daquele tempo e me levou a algum outro já passado.
Depois de vê-la, depois de esperar alguns
momentos diante da fotografia do cão, eu percebi que estava pronto para ir
embora. Não precisava ver o resto da exposição. O que ela tinha para me falar,
já tinha dito ali. Eu não queria voltar, não precisava voltar, para as
esfoladas superficiais e frias, para os cortes na pele realizados para vê-la se
abrir, mas que não causam dor. Eu só pensava no cão da fotografia ali caído
precisando ser salvo, mas distante de mim. Tão longe em 1979, onde, não
importasse o quanto eu corresse, não poderia chegar. Em quanto e era pequeno e
escurecido naquele espaço negro a ponto de me tornar imperceptível.
Arroz, o cachorro juntado do barranco, aos três anos de idade.
Já havia ouvido a história, mas nunca contada dessa forma. Sério, achei o texto lindo.
ResponderExcluirQue lindo
ResponderExcluir