terça-feira, 30 de outubro de 2012

História da Arte, Megalomania e Eu

Esta é a história de um grupo de homens que tinham algo em comum: todos se achavam grandiosos a ponto de determinar quais acontecimentos irrisórios e irrelevantes deveriam ser legados às próximas gerações, obrigando seus descendentes a repetirem exageradamente seus aborrecidos relatos até cumprirem o fato de azucrinar toda e completamente a paciência de sua espécie.
Oh, você duvida que nove desses inocentes homens, movidos por justos motivos e honradas ambições possam determinar um destino tão funesto à colossal massa ignóbil que chamamos de humanidade? Então se sente, meu bom amigo, e prepare-se. Aconselho que acomode bem a cabeça, tire o monóculo e o guarde protegido no bolso de seu colete ou outro local no qual torne impossível a ele cair dentro da sua xícara de chá assim que se aborreça e caía no sono. Comecemos então tal história pelo modesto Abade Suger (c. 1081 1151).

Este santo homem, em pleno século XII, acreditou que merecíamos, você e eu e todos aqueles que vieram depois dele e ainda virão, saber detalhadamente de que maneira ele coordenou a reforma na Igreja de St. Denis. Através de longos e enfadonhos relatos de pedreiro, ele supera a cada parágrafo sua capacidade de se autovangloriar através de uma técnica tão refinada que consegue enganar — pelo menos a si próprio — de que está atribuindo a Deus, e não a si, os méritos da obra que ele faz questão de declarar que assumiu, ordenou, organizou e liderou de sua insignificância.
Você deve concordar comigo quando afirmo que apenas um homem santo e culto poderia redigir trechos tão sacros, mas, simultaneamente, tão empíricos e descritivos, fusionando tão adequadamente os dois mais insuportáveis estilos de escrita existentes em uma obra de uma precisão e requinte imperdoáveis polindo-os com o entusiasmo de uma prestação de contas ou declaração de pagamento de tributos como este fragmento:

Fizemos preparativos para fortalecê-los em toda a sua extensão, externamente nobres pelo ornamento por virtude desses e de similares [materiais preciosos], e ainda assim internamente não ignóbeis no que diz respeito à segurança, em virtude de uma alvenaria de pedras muito fortes; e no exterior –a fim de evitar que o local seja desfigurado pelo material das pedras expostas– adorná-los (ainda que não [de forma tão atraente] quanto seria apropriado) com painéis dourados de cobre fundido. Pois a generosidade de tão grandes Padres, experienciada por nós mesmos e por todos, demanda que nós, os mais miseráveis homens que sentimos, bem como precisamos de sua tutela, consideremos digno dela nosso esforço em cobrir as mais sagradas cinzas daqueles cujos veneráveis espíritos, radiantes como o sol, servindo a Deus Todo-Poderoso com o mais precioso material que possivelmente a nosso alcance: com ouro refinado e uma profusão de jacintos, esmeraldas e outras pedras preciosas.

Ainda mais santos são apenas aqueles que suportaram tal leitura sem citar o querido Suger devolvendo sua graciosa frase: “possa ele merecer a cólera de nosso Senhor Denis e ser perfurado pela espada do Espírito Santo.”

No século XV em meio à redescoberta da cultura clássica, Antoni Manetti (1423 1497) fez questão de nos legar seu testemunho do “renascimento cultural” expressando sua gentil e delicada bajulação a Fillipo Bruneleschi e o defendendo e justificando sua derrota para Ghiberti — no concurso pela importantíssima e única oportunidade de fabricar uma porta — equiparável apenas a um contemporâneo narrador futebolístico descrevendo uma partida na qual seu time predileto é vergonhosamente derrotado devido a uma bestial incompetência.
Manetti deixa claro sua erudição em relação à matéria de que trata em seu texto, como em trechos em que descreve as formas de conexão entre estruturas arquitetônicas: “[…] essas partes eram quadradas, poligonais ou perfeitamente redondas, circulares ou ovais, ou de algum outro formato.” Sábio como só ele e detentor da tradição clássica, pôde compreender que chutar todas as formas geométricas por ele conhecidas — que nem eram tantas quanto esperadas — e acrescentando “ou de algum outro formato” certamente abrangeria todas as possibilidades reduzindo as suas chances de cometer algum equívoco ou omissão a quase nulas.
Apenas há uma falha imperdoável nesse imparcial relato do menino Antonio: que ele tenha desconsiderado o importante papel e a arte única que apenas o bom senso de um homem comedido poderia produzir. Ao alegar isso, refiro-me ao seguinte trecho:“Mais tarde Paolo Uccello e outros pintores tentaram fazer a mesma coisa e imitar, vi mais de uma e não foram boas como aquela.” Ora Antonio, como pôde a você ser incapaz de perceber a perspicaz visão de um homem que pintava campos em cores azuis?

Pois nas entranhas do início do século XVI, Albrecht Dürer (1471 1528) nos empurra esôfago abaixo o mingau seboso e azedo feito por suas mãos na esperança de que o regurgitemos como nosso novo messias. Seu desespero em mostrar o quão elevado a cultura faz de um homem e o destaca da multidão, seu clamor para que o reconheçamos com distinção entre os seus pares de sua terra só ratifica ainda mais o quão selvagens são os homens do Norte. Como um guardião da arte e da cultura, o velho Alby se mostra como um enviado de Deus em sua santa cruzada para ensinar àqueles menos talentosos do que ele — ou seja, todos que possa encontrar — os melhores métodos que aprendeu e desenvolveu.
Tudo bem, Dürer, você é um bom menino, não precisa implorar tanto, eu concordo que você é esperto se prometer parar de se lamuriar. Sorte nossa a Providência estar tão disposta a nos conceder a graça que enviou às geladas terras alguém tão importante quanto Albrecht para nos ensinar e nos educar. Esforça-se tanto para demonstrar a suma relevância daqueles que deixam algum ensinamento sobre arte deixando isso como ensinamento sobre arte. Mas o que mais poderia se esperar de um homem que se representa como Jesus? O único evento de notável surpresa — ou “não evento” — é Dürer ter resistido ao impulso natural de deixar registros de como ele, na verdade, nascera na Itália, deixando tal documento como testamento antes de sozinho, pois assim solitário exige-se de um homem em sua condição especial, crucificar a ele próprio. Esse foi um homem que se preocupou em deixar um legado para as próximas gerações, independente da existência do mérito de este legado constituir em sua própria imagem.

Em 1593, Cesare Ripa (c. 1560 c. 1622) teve uma esplêndida idéia. Resolveu determinar, através de sua incomparável habilidade de tudo observar e catalogar, quais características deveriam ser usadas para representar cada alegoria ou conceito. Provavelmente, cansado de tentar entender o que diabos queriam dizer os pintores de sua época, resolveu criar ele os critérios para a representação, podendo assim compreender todas as obras através de um método muito mais simples do que aprender as formas de representação elaboradas por outros. Afinal, para que aprender quando se pode obrigar os demais a saberem apenas e somente aquilo que você já sabe?
Assim surgiu a visão simplista que conveniente favoreceu sua habilidade inata de classificar a tudo em apenas duas categorias: “elas se resumem ao fato de serem brancas ou negras, proporcionadas ou desproporcionadas, gordas ou magras, jovens ou velhas […]”. Dessa forma, ele determinou quais posições, formas de penteado, e frases de efeito deveriam ser cristalizadas como manifestação máxima de conceitos. Falo de conceitos ordinários e pouco desenvolvidos, claro. Não espera que conseguisse em relação a ideais mais complexos e elaborados, nem ele próprio esperava isso, uma vez que afirma preferir deixar de lado as representações relacionadas à escrita e à filosofia.
De qualquer forma, esse foi Cesare Ripa, o grande pai de tudo o que é kitsch e santo patrono e protetor da indústria cultural contemporânea. Se bem que talvez já tenha chegado a hora do advento de um novo Ripa, talvez assim alguém conseguisse fazer com que os artistas contemporâneos sigam uma padronização mínima de linguagem, e alguém além deles próprios e de suas mães — mentira, suas mães dizem que entendem, mas é só para agradar — possa alcançá-los e ancorá-los ao mundo de tudo aquilo que é inteligível e razoável.

Chega a hora de tratarmos daquele que foi responsável por desperdiçar várias gerações de jovens potencialmente aptos a tornarem-se úteis à sociedade transformando-os em um vergonhoso bando de chorões suicidas vestidos de preto. Sim, falo dele, falo de Johann Wolfgang von Goethe (1749 1832).
Impetuosos e tempestuosos, Goethe nos deixa um tratado baseado na mais pura essência do melodrama e da desorganização. Procura versar dos sentimentos ocultos nos objetos artísticos, nos homens que observam estes objetos e nos sentimentos dos sentimentos dos homens pelos objetos. J. W., você teve a temeridade de se valer de “ligação entre amigos para aperfeiçoamento progressivo” como palavra-chave! Capturado no redemoinho do próprio paradoxo, jacta a existência da subjetividade e da parcialidade do homem como o mais alto dos valores em um texto que é subjetivo e parcial. Alega objetivamente a existência múltiplas interpretações em um texto que pode ser considerado apenas mais um interpretação subjetiva, o que faria com que suas interpretações da arte perdessem o caráter objetivo se tornando só mais uma frágil possibilidade em meio o uma pilha de tantas outras.
Contenha suas lágrimas, J. W.! Ninguém aqui gosta de resmungões. Pare de tentar justificar seus surtos histéricos emocionais como se eles fossem releituras dos ideais clássicos. Está tão desesperado assim para se legitimar através da tradição?

Quem vem agora? Ah, sim, em 1815 escreveu Quatremère de Quincy (1755 1849) sua ode à dor de cotovelo. Brada ele contra a existência dos museus e das coleções de arte. Não percebeu que estava gritando sozinho pelo prazer de ouvir a própria voz. Sim, esvaziemos os museus e coloquemos o Sr. de Quincy lá, pois muito curioso e digno de estudos é um homem que prefere a arte espalhada entre árvores, enterrada sob toneladas de terra, sendo chamada de doce lar por alguma grata família de roedores. Tudo isso apenas porque não teve ele a oportunidade de montar sua própria coleção enquanto havia ainda obras disponíveis.
Lamentável, Sr. de Quincy, lamentável! Ainda mais quando justifica sua própria ignorância repreendendo aos cultos por seus estudos e erudição. “O público, para o qual precisa trabalhar, é o público que sente, e não aquele que raciocina.” Não se preocupe, meu bom senhor, lhe prometo uma edição do livro de nosso bom amigo Ripa. Assim está dispensado da fatigante e árdua tarefa do raciocínio elaborado e poderá “sentir” a sublime e intensa erupção da insanidade de um homem que esteja com os cabelos e a barba revoltos. Não perderei mais meu tempo explicando de maneira racional o porquê devo ignorá-lo, basta apenas dizer que assim eu sinto.

Lá vem ele que nos prestou o desfavor de fazer Turner acreditar que agradava a alguém sempre que derrubava seu estojo de tintas sobre um pedaço de tela. Johnny Ruskin (18191900) nos“revela” como a humanidade sempre seguiu fielmente um padrão inquebrável, até sua época, em que, convenientemente, o padrão foi mudado porque era isso o que melhor se adequava ao seu período.
Sério, Johnny Boy, não passou pela sua cabeça que sua época, sua gente e sua cultura simplesmente estavam insanas? Um artigo inteiro apenas para legitimar um retrato de um graveto. Se o espartano, o romano e o cavaleiro medieval de que falou adentrassem nos recintos da Old Water-Colour Society “em virtude de idéias que ali geralmente podem ser sugeridas a respeito do estado e sentido da moderna, quando comparada com a antiga, arte”, eles empregariam suas lâminas cortantes e perfurantes contra os integrantes da Society na certeza — tanto deles quanto nossa — de estarem fazendo um favor ao livrar este mundo daqueles que desperdiçam seu tempo pintando a celebração de casamento de dois filhos de nobres famílias de pedras caídas no meio de uma estrada deserta.
Espero que pelo menos as montanhas saibam apreciar em quão ricos detalhes são ilustradas, e que o lago possua uma boa quantia de moedas para gratificar aqueles artistas do qual é mecenas.

Gottfried Semper (1803 1879) sim era um homem de coragem. Não tinha medo nem vergonha de falar o que achava necessário. Não que o que achava necessário fosse realmente necessário, mas não será isso que lhe roubará o título de temerário paladino combatendo a insensatez com mais insensatez.
Primeiro ele começa sua vingança contra a sociedade industrial com um enfadonho monólogo que fundou o gênero conhecido hoje como romantismo melodramático espacial. Pretendendo não dar trégua ao seu oponente odiado — o leitor —, ele ainda, “com a intenção de revelar a lei interior que governa o mundo da forma artística”, nos sugere a leitura de um autor que muito admira o excelente trabalho: ele próprio.

Para evitar repetição nessas e em outras questões intimamente relacionadas, o autor remete os leitores à sua brochura Wissenchaft, Industrie und Kunst: Vorschläge zur Anregung nationalen Kunstgefühles [Ciência, Indústria e Arte: Propostas para o Estímulo da Sensibilidade Artística Nacional] (Brunswick: Vieweg, 1852).

Sabiamente, Semper nos explica — crianças distraídas mimadas que somos necessitando de orientação — como a França foi incrivelmente estúpida na hora de elaborar seu sistema de ensino, e como a Inglaterra e Alemanha foram mais estúpidas ainda por copiar este sistema. Afinal, quem daria crédito a um método elaborado por franceses?
Como se não houvesse citado tolos o suficiente e sobre o justo objetivo de desmascarar cada imbecil a vagar sobre nossa amada Terra, nos mostra como administradores de indústrias compõem um seleto grupo de “cada idiota” que “pensa que entende algo sobre arte”.
Foi ele, Gottfreid Semper, um verdadeiro herói ao nos chamar de idiotas e demonstrar como apenas ele e um seleto grupo de verdadeiros artistas entendem a real natureza da arte, nos revelando nossa própria ilusão megalomaníaca em nos considerarmos aptos para lucubrar questões relacionadas às artes!

E se junta a nós agora Heinrich Wölfflin (1864 1945) com seu modesto objetivo de criar um livro de receitas para a interpretação do humor dos artistas e das nações. Conceitos Fundamentais da História da Arte — que talvez devesse se chamar Identifique todos os estilos em cinco lições básicas — restringe toda a capacidade artística, nata ou adquirida com a prática, a um sistema de regras raciais, temporais ou regionais facilitando assim a todos aqueles que preferem compreender a arte como uma tabela na qual se demonstra dominar ao se enquadrar adequadamente cada autor ou estilo.
Wölfflin constrói uma tabuada com pretensões evolutivas tentando dar respeitabilidade à matéria de que trata concebendo-a por meio de valores supostamente científicos. Um livro que será certamente útil quando a humanidade e o fazer artístico forem substituídos por máquinas autônomas sem percepção emocional. Esses robôs-artistas do mundo que está por vir serão muitíssimo gratos ao homem que afirmou a Itália como sendo um local que se formou “livre de influências externas” e lhe concederão honras como sendo o seu mais notável programador.

Assim você pôde entender como a História da Arte chegou à sua atual condição tendo sido alicerçada sobre as mentes e sonhos de um imperdoável conjunto de homens megalomaníacos que escolheram de forma aleatória ou de má-fé nos legar fatos irrisórios com o intuito de legitimarem sua própria imagem e fazer de si próprios lendas.
Surgiu assim a História da Arte como “A História que Os Arrogantes Anseiam que Os Homens do Futuro Saibam”. Sorte sua, leitor, ter A Providência presenteado nosso mundo com o advento de um homem como eu para esclarecê-lo e resgatar a verdade.

Referências

DÜRER, Albrecht. Carta a Willibald Pirckheimer. 1506. In: HOLT, 1981, pp. 330-332.
______________ . Esboço para a Introdução do livro Sobre As Proporções Humanas. 1512-1513. In: HOLT, 1981, pp. 311-318.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Propileus: Introdução. 1798. In: GOETHE, 2008, pp. 95-116.
MANETTI, Antonio. A Vida de Fillipo di Ser Brunellesco. Século XV. In: HOLT, 1981, pp. 167-179.
QUINCY, Quatremère de. Da destinação das artes e das obras de arte, consideradas em sua influência sobre o talento dos artistas e o gosto dos amadores. 1815. In: QUINCY, 1815, pp. 8-10; 19-58.
RIPA, Cesare. Iconologia: Introdução. 1593. In: LICHETENSTEIN, 2055, v. 8, pp. 23-33.
RUSKIN, John. Sobre A Novidade da Paisagem. 1845. In: KERN, 2010, pp. 152-161.
SEMPER, Gottfried. Estilo: Prolegomena. 1660. In: SEMPER, 2004, pp. 71-79.
SUGER. O Outro Pequeno Livro sobre A Consagração da Igreja de St. Denis. Século XII. In: HOLT, 1981, pp. 36-48.
WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos Fundamentais da História da Arte: Introdução. 1915. In: WÖLFFLIN, 2000, pp. 1-23.

domingo, 28 de outubro de 2012

O Expressionismo e A Guerra dos Espíritos


 
 
Não há dúvida, ou alternativa, no instante de selecionar o melhor dos movimentos modernos. Não só adequado quando se visto pela modernidade, mas quando se observado do século XIX, porque o Expressionismo tem uma alma moldada no XIX, forjada pelos mesmos ferreiros que antes, mesmo que não se lembrem, forjaram as espadas empunhadas pelos cavaleiros que reluziam em prata. Apesar do instinto da Modernidade em buscar a arte como nada mais do que arte, da arte como um Oruboros, como a Serpente de Midgard enroscada em si própria sustentando todo um mundo sozinha, o Expressionismo lutava como se combatia pelas regras antigas. Supondo que você acredite, como eu, que o espírito — e, assim, a cultura — do Ocidente se formou do confronto entre os ideais clássicos e os ideais animistas, da eterna batalha entre uma tentativa de recuperar a tradição helena mediterrânea contra a retomada da tradição medieval do Norte; que a sucessão Renascimento > Barroco > Neoclassicismo > Romantismo > Realismo > Simbolismo foi movida pela ânsia dos filhos em superarem seus pais invocando a sabedoria de seus avôs… Supondo que esta seja uma das formas de o nosso mundo pode ser visto, o Expressionismo foi o última geração a lutar nesta guerra.

E quem eram nossos inimigos? Pois sim que era o Impressionismo. Independente do que eles ou do que seus inimigos — outros que não nós — dissessem, eles estavam na batalha. Vê como eles negavam nossos símbolos, nossos sonhos encarnados em formas de anjos, nossos heróis que salvavam o mundo e nossos magos que faziam o inimaginável? Como ignoravam tudo aquilo que não podiam ver? Eles podiam fugir de algumas regras do que se acha “clássico”, regras de forma, mas não das regras de idéias. Os impressionistas acreditavam em capturar o mundo, na representação como uma apropriação e duplicação do que se é percebido, apenas discordavam na forma desta percepção. Em idéia, em espírito — apesar de não acreditarem nisto —, eram clássicos. Coube ao Expressionismo combatê-los, negar sua representatividade do que se é percebido apenas pelos sentidos. Mostrar o mundo como ele é através do que se sente dele, retomar o que é próprio e único de cada indivíduo, esclarecer que o mundo existe no que pensamos e sentimos dele, que o mundo existe em nós, quebrar as pretensões objetivas de entender a verdade. O simples fato de que apenas alguns entre muitos acreditam na objetividade já não prova que ela é um ponto de vista subjetivo?

 
 
O Expressionismo, como fez a encarnação anterior de sua idéia no espírito romântico, mesmo na Modernidade, se colocava não com uma ruptura total do passado. Uma ruptura sim, mas apenas a objetividade antes dela, mas fazendo isso com base em uma tradição, como uma continuidade de algo que veio antes e que deveria estender ao futuro. Negava a modernidade e buscava no passado o motivo para continuar. Em meio ao ferro e ao vapor, tentava lembrar os homens de que a arte que faziam e eles próprios eram de natureza e propósito espirituais, tentava lembrar que eles eram mais do que uma massa disforme sem identidade emplastrada em uma cidade cinza. Então nos davam as cores. Eram tão iguais na crença do subjetivo que eram tão diferentes, um grupo que estimulava o de específico em cada um a ponto de, muitas vezes, não se conseguir identificá-los como grupo. Mas só se você olhar com seus olhos clássicos objetivos, se olhar só as formas. Pois esses não são seus olhos, são só lentes. Retire-as e experimente outras, veja não a aparência, mas a idéia, o objetivo, a busca e o sonho. Está vendo como são todos diferentes e iguais? E iguais e diferentes? E que a igualdade e diferença não está neles, mas em você? Está na sua mente, e na minha.

À Modernidade, mas sem esquecer o passado, assim cavalgavam em cavalos brancos de honrados paladinos medievais, com os corpos tatuados com os símbolos das culturas tribais e seus ritos que se repetem desde que nossa espécie recebeu uma alma sensível e uma mente engenhosa, mas trajando novas e espalhafatosas armaduras azuis. Essas recentes couraças — que não eram feias, ou eram, porque a feiúra não está nelas, esta em quem as vê feias — habitadas por fantasmas antigos que não queriam abandonar este mundo, não antes de terem cumprido sua missão.
 
E depois deles? Depois, talvez, a guerra tenha acabado. O Espírito Clássico de corpo e intelecto inquestionáveis trajando sua toga e ostentando a Ordem como arma, O Espírito Anímico sombrio e intenso rodeado pela tempestade… Ambos caíram pelas mãos de algo mais intenso, faminto e jovem. Uma nova guerra? Talvez, mas se fosse, não tratava mais de luta por retomada, nada mais tinha a ver com a tradição. Uma guerra que os dois antigos não têm força mais para lutar. Uma disputa de arte como forma, de arte contra arte. Uma batalha de espíritos que se negam como espírito, de formas vazias e sem alma, uma batalha de golens.
 
E quem foi o Expressionismo, você pergunta? Foi o último herói a tombar em uma disputa esquecida, o último a ter alma. Por enquanto, ao menos. Ou você acredita que o jovem recém nascido, mesmo faminto, tem realmente Ímpeto e Ordem suficientes para conter pela eternidade os dois velhos inimigos? Tudo que eles precisam são de novos avatares…

domingo, 21 de outubro de 2012

O Sumiço do Mago


 
Recentemente eu me lembrei da música Putz, O Grande Mago e percebi o quanto ela é importante para mim. Quando eu era bem pequeno, com uns dois anos de idade, ganhei um LP da Turma do Balão Mágico, mas era muito jovem para entender do que se tratava. Então, quando eu estava com sete ou oito anos, redescobri aquele disco e ao ouvi-lo me deparei com, entre várias músicas infantis alegres, esta canção: 

Putz o grande mago
Anda por um triz
Fez sumir o seu amor
E não pode ser feliz 
  
Vive resmungando
Que tremendo trapalhão
Apagou a luz do amor
E ficou na escuridão 
  
Putz o grande mago
Anda por um triz
Fez sumir o seu amor
E não pode ser feliz
(2x) 
  
É inacreditável
Tudo aquilo que ele faz
Faz isso aquilo
E muito mais
Mas Putz não tem paz 
  
Vive reclamando
Não tem alegria não
Nem riso
Nem sorriso
Não
Nem um pingo de emoção 
  
Putz o grande mago
Anda por um triz
Fez sumir o seu amor
E não pode ser feliz
(2x) 
  
É extraordinário
Tudo aquilo que ele tem
Só que tem
Que ele não tem
Um alguém
Que lhe quer bem 
  
Vive perguntando
Martelando essa questão:
— Será que eu sou feliz
— Ou sou
— Um putz teimosão? 
  
Putz o grande mago
Anda por um triz
Fez sumir o seu amor
E não pode ser feliz 

Então eu voltava a agulha para que a música se repetisse e repetisse, e ficava imaginando o Putz em seu castelo, entre muitos artefatos únicos, conhecedor de maravilhas, mas sem ter com quem dividir ou ensinar. Lá sozinho sempre. E, na minha imaginação, Putz estava sozinho porque ninguém queria estar com ele. E, se ele havia ficado sozinho tanto tempo, isolado até ninguém mais lembrar que ele existiu. Exceto por aquela música que havia sobrevivido e ecoado para longe. Então, cada vez que eu a ouvia e pensava nele, que estava em algum lugar sozinho, cada vez que ela acabava e eu desejava que começasse outra vez, eu estava me lembrando dele e fazendo com que continuasse a existir. Como se eu fosse o único que se importasse, a âncora que prendesse ele ao mundo e o impedisse que dispersasse como uma nuvem de poeira.
Até que passei a acreditar que, se eu era a única pessoa que ouvia aquela música, se ninguém mais se importava, talvez ela só existisse para mim, talvez o Putz só existisse para mim, talvez eu fosse o Putz. Imaginava se aquela não era minha história. Passei a acreditar que um dia eu o encontraria, ficaria cara a cara com Putz, e, quando eu me tornasse ele, o próprio não precisaria mais existir, porque eu não precisaria mais me lembrar dele. Então me entregaria seu lugar. Seria eu naquele castelo, com aqueles tesouros únicos, com todos os livros, com todo o conhecimento e sem ter para quem transmitir. E achava que aquele era meu destino, o que comprova que nunca fui uma criança muito saudável. Seria eu quase desaparecendo, no limite da existência, torcendo para que alguém encontrasse aquela música e a cantasse e com ela se lembrasse de mim. E, enquanto essa pessoa a ouvisse, eu não desapareceria.
Foi quando percebi que o que existe só é em relação à memória. Que todas as coisas, inclusive eu, só iriam continuar existindo realmente enquanto pudessem ser lembradas, enquanto eu pudesse fazer alguém se lembrar de mim, enquanto merecesse que alguém lembrasse. Eu ficaria preso naquela sala no castelo, mas não desapareceria se pelo menos alguém lembrasse.
Agora eu acabo pensando no quanto essa música foi importante para a formação do meu gosto, pelo meu alinhamento com o Romantismo, pelo quanto eu adorava histórias japonesas, que na época não entendia direito o porquê, mas hoje tenho o conhecimento da estética da beleza na tristeza da arte japonesa. Até como escritor, eu sempre busquei fazer algo com o mesmo impacto. Algo que fosse igualmente simples e que passasse tanto efeito como o que essa música me causou.

Quando relembrei da música recentemente, quando lembrei o quanto ela é importante, me senti culpado por tela esquecido. Não esquecido totalmente, porque sempre estive sob os efeitos dela a vida inteira, mas havia esquecido que foi ela que os desencadeou. Então me senti culpado por deixar Putz se tornar uma nuvem e se dispersar. O engraçado é que, ao procurar recentemente na internet, não consegui localizar a música como arquivo de som ou imagem. Só encontrei a letra escrita. E não encontrei mais alguém que se lembrasse dela, que desse importância a ela ou que desse importância ao fato de não ser lembrada. Como se Putz ainda estivesse esquecido, como se eu ainda fosse o último a lembrar dele. Como se ainda fosse minha a responsabilidade de ajudá-lo a não se perder. Pelo menos até eu finalmente encontrá-lo e assumir seu lugar. Talvez o motivo deste texto seja justamente de fazê-los lembrar, de puxar Putz de volta para este mundo, de fazer com que mais alguém se lembre de Putz lá sentado sozinho, de que a história continue, e de que ele não desapareça. E porque, enquanto ele existir, enquanto ele ainda estiver lá sentado, não chegará minha vez de assumir seu posto. 
 
 
 
Meus agradecimentos à Cláudia Moura, que realizou a façanha de encontrar a música na internet: