sábado, 15 de dezembro de 2012

O Cão Muito Distante


Miguel RIO BRANCO
Dog Man Man Dog, 1979
(detalhe)
fotografia


Ao adentrar no Santander Cultural para ver a exposição Ponto Cego de fotografias e outros trabalhos de Miguel Rio Branco — realizada em Porto Alegre de 5 de setembro a 11 de novembro de 2012 —, eu me deparei um espaço negro. Em meio à escuridão que o lugar se tornou, as obras expostas pareciam gritar em uma explosão de cores, me chamavam de longe. Eu até tentava desviar o olhar, mas invariavelmente acabava diante de outra distante tentação cromática, de outra sereia cantando para me atrair.
Então, ao desistir de minha resistência, tomei coragem para me aproximar e confrontá-las. Entretanto, ao me aproximar, era como se o encanto se fosse, como se a canção ecoando ao longe fosse muito mais poderosa do que ela vinda direto de sua fonte. Só havia um murmúrio.
Os trabalhos pareciam me falar sobre cor e textura — principalmente textura —, sobre capturar formas, sobre a captura de elementos — objetos — em um espaço capturado, sobre acumulação de diferenças, sobre contraste, mas tudo isso era só formal. Certo, havia algumas questões sociais em alguns lugares, mas me pareciam tão longe, escondidas por tantos níveis de massas, granulações e relevos. Pareciam ser apenas uma desculpa para tratar das formas.
Caminhando pelo espaço, eu via imagens ásperas, que eu acreditava que deveriam me ferir, mas só esfolavam minha pele, não me machucavam por dentro. Houve um instante que o que mais me incomodava na exposição era minha indiferença a ela, a preocupação de ter me tornado insensível querendo que aquelas paredes desabassem e me esmagassem na esperança de que assim as obras me fizessem sentir algo. Então eu continuei caminhando naquele lugar que eu achava que deveria me passar alguma sensação mais elaborada e intensa, mas que neste dia só me explicava relações frias que poderiam ser convertidas em fórmulas ou tabelas.
Então eu vi lá na frente, brilhando entre o espaço negro, e corri em sua direção. Ao chegar, não, antes disso eu desacelerei e, diferente dos outros casos, não me veio a indiferença. Eu quis recuar e ir para longe, mas não fui. A obra era Dog Man – Man Dog, de 1979, e tratava-se de duas fotos, mas foi uma delas, e posicionada acima, que me atraiu e repeliu simultaneamente. Era a fotografia de um cão deitado em uma calçada, encolhido, totalmente contaminado com alguma forma de doença de pele. E os detalhes de texturas de Rio Branco só faziam sua moléstia parecer mais grave, e, ao mesmo tempo, faziam-na parecer uma extensão da sujeira no chão em que estava, nas feridas provocadas nas pedras do calçamento.
O cenário era tão frio, o concreto e as pedras como um deserto que combate o que é vivo, e o cão lá fraco e parecendo agonizante. Tão fraco que parecia não ter mais forças para agonizar. E tudo o que eu pensava era em como aquela imagem me enfraquecia.
Fez-me recordar um acontecido há cinco anos. Eu voltava para casa mais cedo do que deveria. Por algum motivo, desisti de assistir uma aula e fui embora. Quando caminhava para casa, vi lá na frente na rua um homem despejando o conteúdo de um carrinho de mão em um barranco. Terminado seu afazer, o homem veio em minha direção empurrando o carrinho e passou por mim indo à direção oposta. Quando passei pelo local onde o homem descarregara, tive a impressão de ouvir um barulho, mas depois de confrontar o silêncio, segui adiante. Então novamente ouvi o som que não entendia. Voltei, me aproximei da proteção na lateral da rua e olhei barranco abaixo. Lá no fundo, encima de uma pilha de lixo, estava em um grande saco um cachorro enfiado pela metade, com as pernas e cauda para fora, e um pequeno filhote que me chamava. Então pulei a cerca e desci ao outro nível. Lá embaixo eu percebi que o cachorro mais velho dentro do saco estava morto, e o filhote completamente coberto por uma doença de pele que o fazia mais parecer uma tartaruga do que um cão. Então o coloquei em cima do paredão que levava ao nível de aonde eu viera e torci para que não corresse para a rua enquanto eu escalava de volta. Lá em cima, eu não sabia o que fazer com o filhote, e ele passou a me seguir. Então andei devagar para que pudesse me acompanhar até em casa.
Então, com toda a atração e repulsa, com o conflito entre ir embora ou permanecer ali observando mais um pouco, eu percebi que esta foto conseguiu me ferir, me machucar por dentro, e não só esfolar a pele. Talvez ela tenha me servido como um punctum dentro da exposição. Não um ponto em uma foto, mas uma foto entre fotos, que acaba sendo de alguma maneira um ponto entre pontos, mas em uma escala diferente. Algo que eu possa definir, tocar, limitar e que, por alguns instantes me arrancou daquele tempo e me levou a algum outro já passado.
Depois de vê-la, depois de esperar alguns momentos diante da fotografia do cão, eu percebi que estava pronto para ir embora. Não precisava ver o resto da exposição. O que ela tinha para me falar, já tinha dito ali. Eu não queria voltar, não precisava voltar, para as esfoladas superficiais e frias, para os cortes na pele realizados para vê-la se abrir, mas que não causam dor. Eu só pensava no cão da fotografia ali caído precisando ser salvo, mas distante de mim. Tão longe em 1979, onde, não importasse o quanto eu corresse, não poderia chegar. Em quanto e era pequeno e escurecido naquele espaço negro a ponto de me tornar imperceptível.

 

 

Arroz, o cachorro juntado do barranco, aos três anos de idade.

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